PERSPECTIVA: Rombo contábil da Americanas deve deixar o investidor mais seletivo

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São Paulo – O caso Americanas está sendo visto como um ‘cisne negro’ no mercado financeiro, pois, apesar de não ser inédito, é difícil prever casos como esse se a empresa não apresentava sinais de problemas financeiros reportados corretamente nos seus balanços. A suspeita é que a empresa tenha fraudado dívidas que resultaram nas inconsistências contábeis de R$ 20 bilhões anunciadas em 11 de janeiro pelo então CEO da empresa, Sergio Rial, poucos dias após assumir o comando – e em seguida, deixá-lo.

O valor estava escondido no balanço há mais de sete anos e refere-se a operações de risco sacado (também conhecidas como forfait e confirming), mas não eram reportados corretamente. O balanço da empresa era auditado pela PWC e a companhia também era monitorada pelas três principais agências de risco de crédito (Moodys, Fitch e S&P). As operações também foram aprovadas por bancos e fornecedores. A empresa integrava índices com alto nível de governança, como o Novo Mercado, o Ibovespa e o Indice de Sustentabilidade Empresarial (ISE).

O pedido de Recuperação Judicial das Lojas Americanas foi aprovado pela 4a Vara Empresarial do Rio de Janeiro em 19 de janeiro e atualizado em R$ 42,5 bilhões e 9.713 credores em 13 de fevereiro (de R$ 41 bilhões e 7,9 mil anterior) e figura entre as cinco maiores recuperações judiciais do país, atrás somente de Odebrecht, atual Novonor, (R$ 122 bilhões), Oi (R$ 90,5 bilhões) e Samarco (R$ 57,7 bilhões), em valores corrigidos pela inflação. Os administradores judiciais da Americanas são os escritórios de advocacia Zveiter e Bruno Rezende.

A dívida da varejista com os bancos estava assim até a última atualização: com o Bradesco, soma R$ 5,1 bilhões; com o BTG Pactual, R$ 3,5 bilhões. Com o Itaú Unibanco, R$ 2,5 bilhões. Ao Banco do Brasil, o débito é de R$ 1,6 bilhão; com o Safra R$ 2,5 bilhões; com o Santander Brasil, R$ 3,6 bilhões. Com a Caixa Econômica Federal a dívida citada é de R$ 501 milhões.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga o caso em várias frentes, como por exemplo, as operações de vendas de ações por diretores da Americanas, que se intensificaram no segundo semestre de 2022, mostrando um comportamento diferente do verificado em meses anteriores. Nesse período, executivos da empresa venderam 14,1 milhões de ações, quase cinco vezes a quantidade negociada entre maio de 2019 e junho de 2022, segundo dados da empresa compilados pela Ferramenta Radar de Insiders, da Plataforma Quantzed citados pela Folha de S. Paulo e confirmados pela Agência CMA.

Quais os impactos do caso da Americanas para o mercado?

Ricardo Brasil, fundador da Gava Investimentos, acha que a CVM pode usar esse caso como um marco para o futuro. Uma coisa que existe no mercado é risco moral. Ainda não se sabe o que houve mas, se houve fraude, o ideal é que as pessoas [envolvidas] sejam punidas. Por que se não forem, isso abrirá um precedente para que, daqui cinco anos, apareça uma outra empresa e diga ah, não sabia que a gente tinha um rombo de 50 bilhões e outra empresa quebrando, opina.

Na sua avaliação, o impacto para o mercado é péssimo, com novos casos surgindo após o caso da Americanas após um período sem recuperações judiciais. E se existe uma estratégia para blindar os investimentos de episódios como esse, o fundador da Gava Investimentos afirma que é difícil prever casos como esse e que a saída é a diversificação. Se o relatório é falso, criminoso, ou se houve incompetência das auditorias, o investidor intermediário, que abre os relatórios, não ia achar isso no relatório. As margens eram ruins, ok, mas poderiam melhorar. Outra opção é ter uma estrutura de opções como uma trava, um seguro, caso a ação caia muito, mas isso acaba reduzindo a rentabilidade, eu não gosto, recomenda o analista da Gava.

Acompanhe a íntegra da entrevista no link abaixo:

CMA Entrevista: O caso Americanas e seus impactos para o mercado

Para Enrico Cozzolino, head de análise da Levante Ideias de Investimentos, a diversificação é a melhor estratégia para evitar problemas que são impossíveis de prever, como uma fraude nas demonstrações financeiras. Previsão de fraude ou brechas contábeis não existe, é difícil prever eventos como esse. Mas é possível avaliar o setor e pontos de dificuldade, em que as ações poderiam estar sendo negociadas a múltiplos elevados ou sem o devido desconto, explica.

O que a gente consegue, no final das contas, é reduzir. Eu, felizmente, não tinha nenhuma recomendação de Americanas nem nas carteiras, nem nos fundos, mas não sabendo da fraude ou não, mas numa [estratégia de] diversificação de risco. Em uma análise macro, a gente consegue diversificar em outros papéis ou setores. Uma alocação exclusiva em Americanas, sem dúvida, é algo errado, esse seria o erro.

Veja a entrevista com Enrico Cozzolino, head de análise da Levante Ideias de Investimentos, neste link:

CMA Entrevista: O caso Americanas -Análise e diversificação podem reduzir riscos em casos como esse?

Jaiana Cruz, sócia da AVG Capital, também reforça a importância de diversificar e que o investimento no mercado de ações é exposto a riscos. Você está acreditando na capacidade de uma empresa em gerar lucro operacional e rentabilizar o dinheiro que você investiu nela. É apenas uma crença, não há garantia de retorno. Portanto, você está exposto a todo tipo de risco, seja ele sistêmico (risco global, como uma pandemia, por exemplo) ou não-sistêmico (específico de uma empresa ou setor). Se a empresa quebrar a qualquer momento por qualquer motivo, você, enquanto investidor, vai sofrer as consequências. Provavelmente você vai perder seu dinheiro. Precisamos ser realistas quanto a isso. A Americanas não é o primeiro caso e nem será o último.

Sergio Castro, analista da Agência TradeMap, acrescenta que a queda dos preços dos papéis faz parte dos riscos do negócio e não dá o direito de o acionista receber o dinheiro de volta e que diante disso, em uma eventual falência da companhia, as ações seriam retiradas da Bolsa de Valores e o investidor perderia todo o investimento realizado. “Há a possibilidade de o investidor entrar na Justiça alegando má-fé dos executivos. No entanto, a chance de sucesso é baixa e o processo é lento.”

Sergio Castro, analista da Agência TradeMap. Divulgação.

Castro acredita que, pelo fato de as ações da Americanas estarem classificadas dentro do segmento de Novo Mercado, que adota critérios mais rígidos de regras de governança e práticas de administração e transparência, é possível deduzir que os critérios impostos no segmento não sejam tão rígidos quanto aparentam, portanto, pode ser que investidores passem a desconfiar dos padrões de transparência contábeis que servem de base para analisar se estão fazendo um bom negócio.

Além disso, o escândalo envolve uma possível fraude da Americanas. Se comprovada, seria ainda pior, pois o mercado brasileiro poderia ser descredibilizado por investidores estrangeiros e locais, comenta o analista da TradeMap.

Ele vê o cenário macro desafiador deste ano como o maior problema do varejo, que também pode sofrer o impacto do aperto de crédito dos bancos devido ao calote. O contexto macroeconômico de juros e inflação elevados em 2023 deve continuar pressionando as margens das companhias, principalmente as do segmento de móveis e eletrodomésticos.

A recomendação da TradeMap para os investidores é, além de fugir da ação da Americanas, seguir a estratégia de buscar empresas com resultados sólidos e com ações que estão com preços abaixo do valor justo, gerando um potencial de valorização para o acionista.

Para Pierre Havrenne, analista de ações do setor de varejo da Fama Investimentos, ainda que fosse impossível descobrir este rombo específico olhando para as informações publicadas pela companhia, por outro, era nítido que a empresa tinha problemas em relação a geração de caixa e alavancagem. Para os analistas que tiveram a oportunidade de aprofundar sua análise sobre a empresa, outros pontos como a dificuldade de se obter respostas claras da administração com relação a divergências em algumas linhas do resultado, alto turn-over do management, descumprimento recorrente de prazos contratuais de pagamento junto a fornecedores e mesmo atitudes bastante agressivas perante críticas podem servir de alerta, mas não necessariamente indicam a existência de fraude como a que ocorreu.

Pierre Havrenne, analista de ações do setor de varejo da Fama Investimentos. Divulgação.

O analista da Fama acredita que, para o mercado de ações, o caso Americanas deve ter pouco efeito. Para o mercado de renda fixa, no entanto, temos observado uma restrição maior de crédito e elevação nos prêmios de risco em títulos corporativos, afirma. Ele considera o caso da Americanas isolado. Tirando efeitos secundários como possível restrição maior a crédito e prêmios de risco mais elevado, não há motivo para dizer que outras varejistas ou empresas do 3G devam sofrer por conta do episódio de forma análoga, é de se esperar que certos concorrentes da Americanas se aproveitem do momento para ocupar espaços deixados pela empresa.

Para Pierre, os bancos devem sofrer um efeito neste trimestre em função do episódio, mas, de certa forma limitado e pontual, o que demonstra bom gerenciamento de riscos. Temos visto provisões que vão de 30% a 100% do valor do crédito cedido à Americanas e um impacto relativamente pequeno no resultado, avalia.

O analista de investimento da Mirae Asset, Pedro Galdi,conclui que, para o mercado de ações, o episódio da Americanas trouxe contágio para credores (bancos e fornecedores, principalmente) e desconfiança para seus pares, mesmo não significando que outras varejistas se utilizem deste modelo. Os investimentos seguem, mas com investidores um pouco mais seletivos.

Apesar do escândalo da Americanas e todo o processo judicial que a varejista enfrenta, o coordenador do MBA em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios Acilio Marinello, sugere ao investidor seguir com as ações da empresa em carteira. “A recomendação é ter muita resiliência e condições de mantê-las porque a perda já está realizada”. Ele exemplifica o caso da Oi, que ficou em processo de recuperação quase três anos e quando conseguiu sair, as ações tiveram um salto considerável.

Acilio Marinello, coordenador do MBA em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios. Divulgação.

Mas ele ressalta que não garante que quando a Americanas passar pelo processo de reestruturação, as ações vão retomar a alta e todo o investimento. “Isso não é possível afirmar”.

Para o investidor que quer adquirir os papéis porque estão baratos, a recomendação é de tranquilidade e pensar a longo prazo. “O perfil desse investidor tem de ser agressivo porque nos últimos dias a ação estava em um processo de altíssima volatilidade, já chegou a bater R$ 2,20 e hoje fechou a R$ 1,13 [segunda, 13]; esse investidor está habituado a tomar risco, pode ser uma grande oportunidade de ganhos futuros de médio a longo prazo”. E enfatiza que não recomenda operação day trade.

O que dizem os advogados

Antonio Nachif, especialista em Recuperação Judicial e Arbitragem e sócio do Dias Carneiro Advogados, explica que a Recuperação Judicial (RJ) é um mecanismo jurídico para uma empresa em crise econômica financeira, para reestruturar suas dívidas e que tem entre os principais aspectos algum desconto no valor, em acordo com os credores, e concessão de prazo para a quitação. Outro aspecto relevante é que tem um período que a empresa fica protegida (“período de suspensão) para dar um fôlego para a empresa se preparar, criar um plano de reestruturação, que deverá ser aprovado por uma assembleia. Os credores podem virar acionistas, pode haver venda de bens e entrar um terceiro financiador.

Nas regras de RJ, os acionistas não têm direito a voto porque a lei entende que pode haver um conflito de interesses. Em casos de fraude, as discussões acontecem fora do âmbito da RJ, com os acionistas movendo ação contra os possíveis culpados.

Um exemplo é a ação civil pública contra a PwC, formulada pelo escritório Modesto Carvalhosa a pedido do Instituto Brasileiro de Ativismo Societário e Governança (Ibrasg), que pede indenização pelos danos causados ao mercado e aos investidores pelo descumprimento de seus deveres legais enquanto auditoria externa da Americanas. A ação foi distribuída para a 1a. Vara Empresarial de São Paulo e ao juiz André Tudisco e também busca ressarcimento pelos danos difusos causados à integridade e segurança do regular funcionamento do mercado de capitais brasileiro.

Segundo advogados especializados em RJ, existem muitas discussões sobre a judicialização de supostos prejuízos a acionistas e no Brasil esse é um tema ainda muito embrionário. Há casos de acionistas que pagaram um valor e pediram indenização por não ter pago o quanto a ação valia.

O rombo nas contas da Americanas também levantou o debate sobre o direito de empresas que cometeram fraudes contábeis de usufruir do instrumento legal da recuperação judicial para tentar salvar as atividades da companhia, os empregos e a função social do negócio.

De acordo com o advogado Alcides Wilhelm, do Wilhelm & Niels Advogados Associados, o instrumento da recuperação judicial, regulamentado pela Lei 11.101 de 2005, foi pensado para recuperar empresas viáveis, idôneas e éticas. O caso das Lojas Americanas é um dos primeiros em que uma empresa apresenta uma fraude como fato relevante, eufemisticamente chamada de inconsistências contábeis, e na sequência entra com pedido de recuperação judicial, explica Wilhelm.

Alcides Wilhelm, do Wilhelm & Niels Advogados Associados. Divulgação.

Na sua avaliação é importante punir todas as pessoas que se beneficiaram dessas fraudes, mas não a companhia, pois ela tem uma função social muito importante, gera 44 mil empregos diretos, atingindo 100 mil juntamente com indiretos, e recolhe anualmente mais de R$ 2 bilhões de tributos aos cofres públicos. O sucesso da recuperação judicial, portanto, evitaria também um rombo fiscal nas contas públicas, além de reduzir os prejuízos para trabalhadores e fornecedores, que também são vítimas de suposta trama. As Lojas Americanas têm uma relevância enorme na geração de empregos, recolhimento de tributos e na movimentação da economia. Por esses motivos, a decisão da Justiça de acatar o pedido de recuperação judicial é totalmente acertada, avalia o especialista do Wilhelm & Niels.

Os próximos meses serão decisivos para conhecer o futuro da companhia. Após a aceitação do pedido de recuperação judicial, em 19 de janeiro, as Lojas Americanas têm 60 dias para apresentar aos seus credores um plano de reestruturação para evitar a falência.

A empresa tem que mostrar quais meios vai utilizar para o seu soerguimento. As medidas podem contemplar venda total ou parcial de bens, constituição de sociedade com os próprios credores, aporte de capital pelos principais acionistas, diminuição do tamanho da empresa, arrendamento das lojas, alongamento dos prazos para pagamento da dívida, que em casos parecidos chegam a 15 ou 20 anos, entre outros, detalha Wilhelm.

Após a apresentação do plano, a empresa deverá buscar apoio de seus credores para a aprovação do mesmo em assembleia, que pode ser marcada em até 150 dias do deferimento do processamento da recuperação pelo juiz, negociando com todas as classes envolvidas: trabalhistas, garantia real, quirografários e ME/EPP.

Para que seja aprovado, o plano tem que ser viável, factível, convincente. A companhia tem que sair a campo buscando o apoio dos principais credores, cuja tarefa pode não ser fácil, pois eles estão se sentido traídos. Se eles entenderem que se trata de um plano de reestruturação inviável, ele será rejeitado, podendo ser convolada a recuperação judicial em falência. A palavra final será dos credores, explica Wilhelm.

Segundo o especialista, é preciso investigar se as instituições financeiras credoras da Americanas têm parte da culpa no esquema e se precisam ser responsabilizadas também, pois a operação denominada risco sacado, que trouxe à tona um rombo de R$ 20 bilhões, era praticamente impossível de se ocultar.

Por que emprestavam dinheiro para uma companhia que os balanços mostravam ser saudável e com dinheiro em caixa? Emprestavam porque sabiam que por trás havia bilionários, símbolos do capitalismo moderno? Se tivessem avaliado melhor as contas poderiam ter percebido as inconsistências contábeis, assim como as auditorias: como pode uma empresa que tem resultados positivos tão expressivos por tantos anos, estar alavancada em bancos, não conseguindo honrar seus compromissos do dia a dia? No mínimo há um contrassenso, questiona o especialista.

Agências de classificação de risco

Em resposta ao pedido de entrevista da Agência CMA, a agência de classificação de risco S&P Global respondeu que não podem fornecer nenhuma orientação ou declaração que possa ser considerada consultoria de investimento e não estamos em posição de fornecer nenhuma declaração sobre as próximas etapas do ponto de vista jurídico, à medida que os eventos ainda estão em andamento.

Os dois últimos relatórios publicados pela S&P sobre a empresa rebaixaram a nota de crédito na escala global da Americanas de BB para B, em 13 de janeiro, e depois para D de B, em 16 de janeiro. A agência também cortou os ratings na escala nacional, de br-A para D, e rebaixou as classificações de emissão das dívidas senior unsecured da varejista de B para D, retirando os ratings de recuperação.

A nota D foi atribuída após a empresa obter, no dia 13 de janeiro, uma tutela cautelar da Justiça que suspendeu por 30 dias a exigência de todas as obrigações da dívida da empresa, que indica, na visão da agência, que a empresa não honrará com a dívida.

Consideramos a Americanas em situação de inadimplência geral. As classificações ‘D’ refletem nossa visão de que a tutela liminar concedida à Americanas na última sexta-feira assemelha-se a um impasse, pois permite à empresa não pagar nenhuma de suas obrigações relacionadas a instrumentos de dívida nos próximos 30 dias, escreveram os analistas da S&P. A nosso ver, embora a tutela ainda não represente uma recuperação judicial, trata-se de um primeiro passo em direção a um.

Procuradas, a B3, a PWC, as agências de classificação de risco Fitch e Moodys, entre outros agentes do mercado procurados pela reportagem optaram por não se pronunciar sobre o caso.

Reportagem: Cynara Escobar, Camila Brunelli, Emerson Lopes e Soraia Bubaibes.

Edição: Cynara Escobar / Agência CMA.

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