São Paulo – A Câmara dos Deputados e o Senado discutem duas propostas distintas para a reforma tributária, considerada prioritária pelo governo federal para a retomada da economia, mas os dois projetos esbarram num potencial aumento da carga de impostos – em particular sobre o setor de serviços – e na dificuldade de implementação, que pode impor uma derrota antecipada à reforma ao não proporcionar a simplificação esperada pelo mercado, segundo especialistas.
Em linhas gerais, tanto a proposta dos deputados quanto a dos senadores querem tornar menos complexa a cobrança de impostos que incidem sobre a produção e a venda de bens e serviços, que hoje é compartilhada pela União, os estados e os municípios.
A sugestão das duas casas é transformar várias cobranças em apenas duas: um imposto sobre bens e serviços semelhante ao Imposto sobre Valor Agregado (IVA), e um outro imposto que incidirá apenas sobre bens e serviços específicos. Neste formato, também estariam sujeitos ao pagamento de impostos exploração de bens e direitos, locação de bens e outras operações que hoje escapam da cobrança de ICMS e ISS, respectivamente estadual e municipal.
No entanto, há diferenças entre as duas propostas em aspectos mais específicos. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em análise na Câmara (45/2019), por exemplo, propõe que o novo imposto substitua cinco tributos: IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS. A do Senado (PEC 110) é mais abrangente: além destes cinco, também entrariam IOF, Pasep, Cide-Combustíveis e Salário-Educação.
Além disso, na versão dos deputados, a alíquota final do imposto único pode variar dependendo da cidade e do estado, visto que, além da União, cada ente federativo fixará uma parcela da alíquota total do imposto. Na proposta do Senado, a tributação é uniforme e vale para todo o território nacional, com as alíquotas podendo variar de acordo com o bem ou serviço.
Há outras diferenças fundamentais: benefícios fiscais são permitidos na versão do Senado, mas não na da Câmara, e a proposta dos deputados prevê um tempo de transição maior que a dos senadores. Além disso, a distribuição de recursos é teoricamente mais simples na PEC 45 – baseada nas alíquotas que cada ente federativo determinar para sua parcela do imposto – do que na 110 – determinada por percentuais que serão determinados via emendas à Constituição.
O plano do Senado também inclui assuntos que não fazem parte da proposta da Câmara, como a extinção da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a transformação do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) num imposto federal, em vez de estadual, como ocorre atualmente, mudanças na base de incidência do Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA) para incluir aeronaves e embarcações, entre outros.
Segundo o cientista político e editor do site capital Político, Leonardo Barreto, a proposta da Câmara é a que apresenta maior simplificação da carga tributária e tem um maior suporte político, principalmente porque garante um determinado grau de independência aos estados.
“O apoio dos governadores nunca tinha acontecido antes, ao contrário, a luta deles era o fator que impedia a provação da reforma. Se olhar no âmbito dos atores governamentais, que são os estados, existe um consenso interessante agora. O pano de fundo é que os governadores enxergaram na reforma uma maneira de aumentar sua base de arrecadação”, afirmou Barreto.
O ponto negativo, segundo Barreto, é que a unificação das alíquotas prevista na PEC 45 elevaria a carga tributária para alguns setores. “Aumenta a carga tributária para alguns setores que pagam menos imposto. Como por exemplo o setor de serviços. Um escritório de advocacia hoje paga 10% e passaria a pagar 25%. Um restaurante passaria de 19% para 25%. Com isso segmentos importantes podem se opor a reforma”.
O cientista político da Tendências Consultoria, Rafael Cortez, também considera o efeito negativo sobre as prestadoras de serviço como o principal problema da reforma proposta na Câmara, mas acredita que ele possa ser mitigado ao longo da tramitação da proposta. “Há uma tendência de reverter essa situação”.
SETOR DE SERVIÇOS
No final de janeiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tornou público o receio do governo com o efeito desigual que a reforma tributária poderia ter sobre o setor de serviços. “Tem gente que ajudou a formular a proposta do IVA único que estava pensando em 25% de alíquota, e tem gente dizendo que se for para botar municípios dentro chega a 30%. Isso destrói o setor de serviços brasileiros”, disse ele.
Um estudo feito pela Confederação Nacional de Serviços e divulgado em maio do ano passado afirma que, com um IVA de 25%, haveria um aumento de 4,8% na carga tributária. A indústria seria o único segmento beneficiado com uma redução, enquanto os setores de serviços e comércio seriam os mais prejudicados
Ainda de acordo com o estudo, todos os segmentos de serviços privados não financeiros perderiam com a proposta, exceto os de energia, gás, saneamento e telecomunicações.
“A PEC 45 no meu modo de ver não tem nenhuma condição de prosperar”, disse o presidente da Federação de Serviços do Estado de São Paulo, Luigi Nese, acrescentando que a PEC 110 é igualmente problemática. “Acho impossível [aprovar a reforma tributária como ela está]. Acho mais fácil não aprovar nada”, afirmou.
Segundo Nese, a proposta do IVA é favorável à indústria porque, naquele setor, ainda é possível deduzir parte do imposto que já foi pago em etapas anteriores da produção, enquanto no setor de serviços, que em sua maioria presta serviços diretamente para o consumidor final, esta hipótese da compensação não se aplica.
“Mais de 70% do setor de serviços está na ponta, então não tem nada para se compensar ao longo da cadeia. E a cadeia já não é mais a cadeia que era antigamente, que era longa, em que a indústria fazia praticamente tudo – desenhava o produto, criava as matérias primas, transformava, fazia o produto final e a logística para distribuir”, disse o presidente da Fesesp.
De acordo com ele, a proposta das prestadoras de serviço para abrir caminho para a reforma tributária é compensar o aumento da carga tributária resultante do IVA com a desoneração da folha de pagamentos, substituindo cobranças que incidem sobre os salários por algo semelhante à antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
O clima político para isso, porém, é incerto, dada a posição pessoal do presidente Jair Bolsonaro contra este formato de imposto e a demissão do antigo secretário da Receita Federal Marcos Cintra após a apresentação dos planos para a introdução de um imposto sobre pagamentos – muito parecido com a antiga CPMF.
Nese, porém, considera que ainda há espaço para se discutir o assunto, principalmente porque há poucas alternativas. “O clima existe. Você pode falar com qualquer senador, qualquer deputado: o senhor é contra a desoneração da folha? ‘Não, eu sou a favor’. Agora, como? É o que eles não sabem. Eu acho que o presidente da Câmara não explicou como fazer isso. Se você aumentar o IVA, que 25% já é alto, para desonerar a folha tem que aumentar ainda mais o IVA, vai criar problema”, afirmou.
INSEGURANÇA JURÍDICA
Outro obstáculo relevante à reforma tributária baseada nas propostas que estão em tramitação diz respeito a potenciais problemas de implementação, pois há potenciais questionamentos que podem surgir a partir da aprovação de uma legislação que unifique vários impostos em um só.
“O que se coloca é: será que essa simplificação vai trazer outros questionamentos que não temos hoje? Teremos simplificação no modelo que temos hoje em relação a litígios e discussões hoje, mas que questionamentos podem vir?”, disse Fernanda Sá Freire Figlioulo, sócia da área tributária do escritório de advocacia Machado Meyer.
Ela aponta, por exemplo, que na proposta em que cada esfera de administração determinará uma parte da alíquota do IVA, ainda teremos aproximadamente 5.900 alíquotas do IVA, porque cada município poderá determinar sua parcela de cobrança no novo imposto unificado. “Em qualquer município teria tributação diferenciada porque o ISS que vai compor a alíquota pode variar”, afirmou.
Outra preocupação gira em torno da constitucionalidade da proposta. “A PEC 45 como está sendo feita altera uma cláusula pétrea da Constituição, que diz que é competência dos entes tributar determinadas atividades”, disse a tributarista.
Ela acrescenta que há dúvidas adicionais que vão desde questões sobre créditos tributários – que atividades gerarão estes créditos, quais os limites, e como ficará o passivo de créditos anteriores à reforma – até potenciais litígios relacionados ao local que servirá de referência para o recolhimento dos impostos.
“Quando se fala que será recolhido no local onde o consumidor reside, qual o conceito de residência, ou de estabelecimento? Para onde será recolhido esse tributo? Imagina se eu moro em São Paulo, mas tenho apartamento no Rio de Janeiro e compro algo em São Paulo, mas para usar no Rio de Janeiro. O imposto e de São Paulo ou do Rio de Janeiro?”, disse Figlioulo.
PRÓXIMOS PASSOS
A reforma tributária será discutida nas próximas semanas por uma comissão mista, composta por senadores e deputados, a fim de facilitar a tramitação do texto no Congresso. O governo federal desistiu de enviar uma terceira PEC com proposta própria para a reforma. Em vez disso, vai apresentar suas sugestões à comissão mista.
Barreto e Cortez consideram que a reforma tributária será aprovada somente se houver a esperada fusão das PECs e se houver interferência nas discussões do governo também.
“A tendência é a de se unir as propostas. Essa é a chance de se aprovar a reforma. É preciso convergência dos textos sob o risco de ter vários pontos diversos o que inibiria a aprovação. Seria um projeto único da Câmara e do Senado e o governo participando dos debates no Congresso”, explicou Cortez.
Nese, da Fepesp, avalia que se houver muita pressão, “cada um querendo tirar 100% vantagem de cada proposta, acho que não vai ser aprovado absolutamente nada”, e sugere que a coisa mais simples a se fazer, partindo da premissa de que há espaço para substituir os encargos da folha por algo semelhante à CPMF, é apresentar um projeto de lei alterando as regras do PIS e do Cofins, e apresentar uma PEC para desonerar os salários.
“Se fizer concomitantemente a desoneração da folha e projeto de lei através de PIS e Cofins, pode haver sintonia para aumentar um pouco alíquota, e fica um pouco neutro para o setor de serviços porque não terá carga tributária muito forte”, afirmou.
Edição: Gustavo Nicoletta (g.nicoletta@cma.com.br)